mesa livre para a vida

não se descreve o viver. para quê tentar?

15 janeiro 2007

bica fria

Sami Sarkis

à mesa do café. sentada há horas. o teu poema a soar nos meus ouvidos. o verso por fazer e o já escrito. vagueiam-me no ser. crescem em mim.

para a arte não há morte!

dou comigo a dizer alto mas sem espanto qualquer. sabe a consolo eu sei mas pouco mais me sobra.

o jornal não o li. café pedi-o por pedir. nunca o bebo e toda a gente sabe. toda a gente? existirá alguém além de ti?

passam lentas as horas. vejo-te por trás das pálpebras fechadas para esconder nos olhos o que sinto.

será que não me entendes? despertaste o já adormecido e agora derramo em palavras o que, se guardasse, sangraria.

levanto-me. não vale de nada pensar mais. deixo para trás um momento de franqueza. um jornal dobrado. uma bica paga e já fria.

08 janeiro 2007

a espera. I

Gianluca Nespoli

da minha espera sei. não a descrevo faz muito tempo já. da tua não.

que esperas tu tão longe do meu braço que o posso bem estender

sem te tocar?


as esperas são diferentes. têm nomes. respondem pelos nomes

como os cães que nos esperam e nos amam sabe-se lá porquê.


a tua espera é tua. tua apenas. tu sabes o que esperas. donde virá talvez.

a minha já passou essa fase há muito tempo. dorme.

comigo às vezes

nem vento nem lamento a fazem despertar do turpor manso

a que se dedicou sentada aos meus pés como animal estimado

ou não. tanto lhe faz.

enleada a mim como trepadeira verde em casa velha

qual anjo descabido em paisagem de ateu. ali repousa. jaz.


a minha espera tem um odor de musgo e sabor a chá quente

acostuma-se a gente. é sempre assim.

a minha espera não existe. é coisa minha. pertence só a mim.

é uma manta. um manto. vestido de noivado guardado

antes de usar.


a minha espera é vida ainda. - lá. no final. acaba-se o esperar.

da tua espera. só tu podes falar.



que esperas tu tão longe do meu braço que o posso bem estender

sem te tocar?

03 janeiro 2007

despojamento

Antonio Pierre de Almeida


sabedoria está no abrir das mãos. no saber libertar. no abandono da posse. no sorrir da dor que isso possa mesmo vir a dar.

sabedoria deve trazer paz. digo deve, porque nem sempre traz se for apenas a mente a decidir.

sabedoria é calar. outras vezes fazer soar a gargalhada quando a vontade que temos é tudo menos rir, mas, pelo outro, há que conseguir.

- sabedoria? será a palavra certa para usar no que estou a sentir?

e isso importa? estou só a despejar palavras soltas para ninguém ouvir.

palavras enroladas na garganta. palavras que não sobem aos lábios onde o beijo já espreita e é preciso ter sabedoria para o guardar.

sabedoria... sinónimo de amar?

01 janeiro 2007

ontem.hoje

David Bergman

tão jovem o meu corpo e eu infeliz. distribuiram tudo errado os deuses quanto a mim.

hoje que aprendi a paz feita de amor e amores já o corpo me falta a acompanhar.

levo para a morte uma alma a estoirar de vida.

tive na vida um tempo a transbordar de morte.

e não há nada que eu possa fazer para mudar isto. nada.

o tempo é o senhor. o tempo só.

28 dezembro 2006

o beijo. a terra.

Maria Amaral


distante em tempo e espaço fecho os olhos

enleio-me nos teus braços. não te toco

nem tu sequer me encontras pele e sangue quente

no entanto é misturado ao teu que tenho o corpo

e as almas de tão unidas respiram uma só


tão suave este encontro quanto urgente

vivo-o como quem tem presente já

não ter tempo que sobre para uma guerra

de amor, por mais estimulante e desejada

a única porque vale a pena combater


sorrio ao imaginar. abro os olhos. corro ao jardim

beijo a terra plantada a flores de inverno

ela te vibrará o beijo que lhe entrego.

25 dezembro 2006

tu. água em pedra

madalena pestana


tu água em pedra. fazes brilhar de novo

o que o pó tornara objecto baço.

eis que a esperança renovo.


de caminho, apoio-me no teu braço.

que conforto!



sem laço.


20 dezembro 2006

aonde a tua mão?

by jensroesner.de

há tanta mão estendida entre as que se vêem e as ocultas. há tanta ambivalência nesse gesto. tanta diferença até na forma de estender a mão.

mãos de palmas abertas a tudo, a oferecer ou receber. mãos semicerradas num quase medo daquilo que possam vir a encontrar ou a perder.

mãos. expressões muitas vezes esquecidas de quem olha mas que falam quase com própria voz.

mãos implorantes e envergonhadas de terem de ser vistas e apoiadas por nós.

mãos sem amor próprio. sem pudor. que nos atiram pedidos como pedras. e se fecham depois com um riso de escárnio sobre o mundo, a enganar a dor.

mãos agonizantes dos quase a ir ao fundo.

mãos prontas a acariciar gente em paisagens distantes.

mãos erguidas. como punhos de luta ou arrogantes.

muitas mãos. estendidas.

e ainda as mais amáveis mãos - as de crianças artistas e amantes.


*


no meio de tantas mãos. algumas dadas. outras cruzadas entre si.

não vejo a tua. estendida para mim.

19 dezembro 2006

sinais

Daniel Carl Larusso


tira depressa a luz que tinhas na janela

fecha as portas de madeira para que não

te vejam nem a sombra pelos vidros

varre antes as pegadas de terra

que deixaste no tapete de entrada

vai sentar-te no escuro. manda calar o cão.


não há verdade. há uma gama de verdades .

parecidas ou iguais


e se ficares assim quieta. calada

no recanto da casa sossegada

todos passarão de largo sem te ver.

depois? - depois é a tarefa lenta de esquecer.


17 dezembro 2006

máscaras caídas

at Globe masks

se tudo é transitório deixemos cair as máscaras

da teatral eternidade

pensei e fiz. baixei as guardas quase todas

( não quero pensar em arrependimento)

e ficou tudo tão inusitadamente límpido

o que era a sépia renovou o branco

torrentes de uma chuva que nem cai

criaram rios novos de águas luminosas

e eram meus os rios

de novo meus!

a tua gargalhada entrou dentro das máscaras

e sei que a ouvirei

por dentro delas se as voltar a usar.

tu, verdadeiro rio a gargalhar!

12 dezembro 2006

Amigo


fosse-me o corpo jovem mais que a mente e atreveria verdades no olhar-te.

e no entanto o meu corpo ainda é quente e queira ou não, ainda sei amar

o que é que se interpõe? - tu próprio e tanta gente

tanto caminho me separa de ti ! tanto caminho - sei - a não pisar.


virgens de mim , dos meus traços de afecto, ficarão os caminhos

tão livres quanto são


e eu? eu refugiu-me num calmo fantasiar

a olhar-te e a amar-te e a contornar-te de longe o rosto com a mão.


mas basta-me então esse imaginado tactear?

não, meu Amigo. é bem claro que não.

e já que não posso chamar-te meu amor, uso da liberdade que me assiste

de não fingir tratar-te como irmão.


mais Florbelas, não!

11 dezembro 2006

um instante

Joan Ramon Mendo Escoda

instantes brancos em caminhos áridos não regam a secura, iluminam. tão breve brevemente como o voo da borboleta branca na paisagem.

tal como o que sinto hoje é a passagem entre o que fui e o que vou tornar a ser. e tenho de acelerar o passo. não me sei já vestir deste excitante e ainda assim lasso, sonho de amar.

não posso. não sei. não quero!

eia tanto não!

adolescente a negar com a mão e a dizer sim com o corpo todo e o pensamento.

o mais sadio é rir. rir-me de mim, depressa e antes que me esqueça ou que eu aqueça ao colo uma ilusão.

definitivamente respondo-me a mim: NÃO!

09 dezembro 2006

longe perto

foto Antonio Pierre De Almeida


contornei-te os lábios com os dedos. não os sabia tão capazes ainda de uma leveza assim. depois todo o perfil. devagar. devagar. a minha comoção era tamanha que quase tive vontade de chorar, não de tristeza. não. era tolice. de profunda ternura. nada mais.

para quê chamar-lhe amor? as palavras são um pouco como o sal. só na medida certa apuram o sabor.

depois. depois deixei pender as mãos. terias tu sentido? só por pura magia. como se sente no rosto o que alguém deu a uma fotografia?

e no entanto, voltei a reerguê-las. dei-lhes forma de ninho. coisa boa para início de vida com carinho.

mas tu não estás. não és. ou és e não queres ser essa pessoa boa e comovente que me deu para gostar. e tão pouco eu gosto já de gente...

sacudo a cabeça de repente. vamos a acordar. isto é a cercania do natal e este tempo em excesso para sonhar. o melhor é fazer um telefonema e escolher um jantar.

cura o romantismo e a melancolia num instante de tão prosaico e citadino ser.


mas nos meus olhos. bem a brilhar cá dentro há ainda a panela na lareira sobre toros a arder.


at sernancelhe.planetaclix.pt

25 novembro 2006

de-olhos-grandes

foto de carlo83


ela era uma menina de olhos grandes.

sabia de brincar todos os cantos escondidos e os assobios dos pássaros sem nome. e os ninhos das árvores que sabia. e os gritos aflitos das mães quando os ovos estalavam e os filhos surgiam, se um lagarto subia a árvore também.

sabia o frio da pele dos lagartos no verão. e as pinhas recheadas dos pinhais.

sabia os brinquedos de loiça fracturada. dos amigos sabia as bolas de trapos que faziam à vez. das raparigas os vestidos limpinhos. para não poder sujar.

dos adultos sabia o pai e a mãe.

e sabia muito mais dos adultos que dela. mas disso não contava a menina de olhos grandes, uma palavra só. e a ninguém.